*Por Paulo Junior
Triplo impedimento. Três impedidos marcou o bandeirinha. Vai cobrar o impedimento no centro da cancha Juvenal. Prepara-se Juvenal. Chutou, bola na área uruguaia. Salta Obdulio, defendeu de cabeça, recupera Ademir. Correu para Friaça, entrou na área Friaça, aliviou Gambetta. Empurra então na direção de Augusto. Corre Augusto pela ponta-direita, empurrou para Friaça, caiu Friaça, levantou, ainda centrou, o couro ficou com Gambetta que mandou a córner. Córner contra o Uruguai no último instante da luta. Terminou o tempo, vai agora um córner contra o Uruguai. Há descontos ainda, cobrou Friaça. Cabeça de Jair, marcou o juiz apitando o final da peleja. Terminou o jogo com vitória do Uruguai. Uruguaios campeões mundiais de futebol de 1950, reconquistando o título que haviam obtido em 1930 e perdido depois para a Itália. Desolação natural da torcida aqui no estádio do Maracanã. Porque na realidade foi uma peleja brilhantemente disputada e onde a seleção brasileira em nenhum momento correspondeu a expectativa dos aficcionados. Embora lutando com bastante desembaraço e com bastante entusiasmo, a seleção brasileira não conseguiu render diante dos uruguaios aquilo que se esperava. Peça sempre Brahma Chopp, um produto de qualidade Brahma, a primeira palavra em cerveja.
Antonio Cordeiro, Rádio Nacional, final de Brasil um, Uruguai dois, o mais influente jogo da história do futebol, aquele que até hoje sustenta tudo que pensamos ou dispensamos na banca de jornal às segundas-feiras de manhã ou nos almoços de domingo de clássico.
(Imagina Brasil quatro a zero, dois de Jair, dois de Chico.)
Aí eu tinha um texto que começava assim, lembrando a narração da final da Copa de 1950, esperando alguém vir falar que não era final, era um quadrangular!, então o jogo decisivo, bom, e aí eu tinha uma listinha assim:
– Gol de videogame!
Eu pretendia falar sobre o atual momento, o dos tempos da supercomunicação, e essas expressões que vão nos enfiando goela abaixo, como se dizer GOL
GOL
GOLAÇO
E QUE GOL
É GOL
não mais bastasse. E aqui não me cabe nenhum romantismo, além de um sentimento agradável em ouvir o Cordeiro falar ‘peleja brilhantemente disputada’, porque a história vai ser contada por esses momentos, é mais uma sensação de qual o lugar do nosso tempo no mundo, e se alguém achar que é só nostalgia, tudo bem também, mas como lembrou o Leandro Iamin, interrompendo esse texto com uma pensata, fica a questão:
‘Próxima geração: nos desculpem quando buscar gols antigos na internet: não sabemos por que o que cara fala toca a música ao invés de gol’.
O Sérgio Rodrigues, quem inclusive escreveria um texto sobre isso muito melhor que esse devaneio rápido, definiu em ‘O Drible’ algo que reproduzo com minhas próprias palavras e síntese desde então: não é que o futebol piorou, é que inventaram a televisão. Nenhum lateral-direito é tão bom diante de vinte câmeras de quarta e domingo.
O futebol pertence ao estádio. Se você não estava no estádio, alguém te contava o que estava acontecendo ou aconteceu: o rádio e a crônica do dia seguinte não tinham compromisso com a reprodução científica dos fatos, assim como os contadores de história. Tem afeto. Tem criação. É arte, oras. Sua avó conta histórias melhor que o History Channel, ponto.
E olha que contraditório: com a televisão, que você está vendo o jogo, óbvio ululante, você não deveria precisar de alguém gritando de dentro daquela caixa, até por falta de educação com seus amigos que vieram assistir ao jogo e trouxeram cervejas e amendoim e tem alguém berrando na sala, mas daí vem o cara e grita
GOL DE VIDEOGAME!
E aí eu fico pensando que se a televisão deixou os laterais-direitos mais grossos, imagina só o que fizeram os joguinhos de simulação com os zagueiros todos quando os garotos percebem que eles não saem jogando e tocando para o goleiro e recebendo de volta e devolvendo para o goleiro, porque é isso, a cada trezentos zagueiros que você já viu jogar bola na vida, meia-dúzia são interessantes e no máximo um ou dois vão te fazer falar que cara bom!
E quando acontece um bonito gol, diariamente ou sempre principalmente entre as multinacionais europeias milionárias e suas fornecedoras de matéria-prima espalhadas pelas cidades menores do país, aquilo é tudo, menos um gol de videogame. Porque se a identidade do futebol brasileiro foi forjada porque as crianças queriam ser iguais aos heróis que elas ouviam no rádio, depois elas passaram a imitar o que faziam seus ídolos na televisão, e agora, olha só, os próprios jogadores estão a copiar o projetado, o virtual.
Não é que o boneco do videogame parece o jogador do Barcelona, o jogador do Barcelona está jogando igual o Playstation. Imagina só, inspirados pelo próprio emulador, a serviço da própria cópia.
E nos tempos que a gente mais se comunica, fala, ouve e lê, o exemplo esse que saltou aos olhos é a falta de assunto, as referências pobres, o mergulho num raso debate científico e tecnológico, das interações de sim ou não, dos memes sem literatura, sem a prepotência de considerar como assunto menor, não, mas com a angústia da demanda reprimida no entorno de uma arte tão nobre, a da peleja brilhantemente disputada.
(Imagina um Bate-Bola qualquer em janeiro de 1957, tela cortada por um L luminoso, bancada futurista saída direto de uma loja da FNAC, quatro homens brancos de camisa polo:
Gasolina já é o melhor do mundo? Participe: #GasolinaGoldenFoot #GasolinaPrecisaIrPraEuropa)
Às bancadas, ou às histórias bem contadas.
E um pano pra dar brilho naquele rádio de pilha velho, outro pra estante no canto do sofá, que hoje é sexta-feira.
*Paulo Junior é jornalista, escritor, cineasta e comanda um punhado de podcasts na Central3