*por Victor Faria
Eusébio morreu durante o sono. Nas últimas semanas comia pouco, o pouco apetite explicava o fato de ter vivido os primeiros anos. Experiências em laboratórios demonstram que a expectativa de vida de ratinhos sujeitos a uma baixa dieta de calorias aumenta consideravelmente.
Pela manhã, ao acordar, ele já estava descansando.
Sua mulher sentou-se no colchão, em frente à janela aberta. Abraçou os joelhos magros. Ergueu os olhos para o céu, onde, pouco a pouco, se iam desenhando percalços de nuvens encarnadas. Galinhas cacarejavam no telhado. Um choro de criança subia do andar inferior. Flora sentiu o peito esvaziar-se.
Alguma coisa escapava de dentro dela e deslizava depois pelo cimento frio. Perdera o único ser no mundo que a amava, o único que ela amava, e não tinha lágrimas para o chorar.
Ergueu-se e esmurrou uma das paredes, ainda limpas, no quarto de visitas.
Eusébio morreu durante a noite. Tudo agora é tão inútil. O olhar dele acarinhava, explicava, sustinha.
Subiu vagarosamente ao terraço. O dia expandia-se num bocejo morno. Talvez fosse domingo. Parecia ser domingo. As ruas estavam quase desertas. Viu passar um grupo de mulheres vestidas de preto, carpideiras a antecipar a dor nacional. Uma delas, ao avistá-la, ergueu a mão numa condolência prática e infeliz.
Flora recuou.
Podia saltar, pensou. Avançaria. Subiria ao parapeito, tudo tão simples.
As mulheres, lá em baixo, vê-la iam um instante, sombra levíssima, a adejar e a cair. Recuou, acuada pelo azul, pela imensidão, pela certeza de que continuaria a viver, mesmo sem nada que desse sentido à vida.
A morte gira ao redor, mostra os dentes, rosna. Vem e se estabelece. Esquece daqueles que acompanham, mas não partem. A noite. Outra vez é noite. Tem-se contado mais noites do que dias. A noite se desdobra em duas. Chove, tudo transborda. De noite, é como se a escuridão cantasse diretamente pra ela. A noite subindo e ondulando, devorando as horas, os prédios. Pensa, outra vez, naquele menino a quem devotou com amor. Passeava por Lisboa. Os que nele demoram o olhar nunca mais se esquecem. A impressão era que acabara de sair de uma tela de Modigliani.
***
Parece mais fácil ter fé em Deus, não obstante ser algo para além de nossa limitada compreensão, do que na arrogância da humanidade. Durante anos, afirmou-se crente por preguiça. Seria difícil explicar aos seus sua descrença. Tampouco acreditava nos homens, mas isso as pessoas aceitam com facilidade. Compreendi ao longo dos últimos anos que, para acreditar em Deus, é forçoso acreditar na humanidade. Não existe Deus sem humanidade.
Continua a não acreditar, nem em Deus, nem nos homens. Desde que Eusébio morreu que cultua seu espírito. Conversa com ele. Julga que a escuta. Acredita nisso por puro esforço de imaginação, muito menos da inteligência, mas por empenho do que dizem ser desrazão.
Conversa consigo mesma. Como, aliás, os santos, aqueles que se vangloriavam de conversar com Deus. Nisso, soa menos arrogante. Conserva consigo a alma doce de seu companheiro. Em todo caso, são conversas que a fazem bem.
***
Naquela manhã Flora estava muita agitada. Talvez fosse reflexo da euforia dos mortais. Dos que gastam sonhos em glórias alheias. Que são o todo e o nada. E por isso gritavam.
Horas mais tarde, através da janela da sala, pode ver um homem correndo. Um tipo alto, magérrimo, incrivelmente ágil. Três combatentes perseguiam-no a curta distância. Populares nas esquinas, o coro em sinfonia disparada. Em escassos segundos havia uma multidão em seu encalço. Reparou quando, preparando o chute, o horizonte expandiu-se diante do homem diante das possibilidades. Pode perceber a bola rolando em guiada condição, esquivando-se dos inimigos e morrendo no fundo da rede. A turma alvoroçada ia alcançá-lo, estava à distância de um braço, quando o homem retomou a fuga. Nessa altura já um segundo grupo se formava, metros adiante. O homem conseguiu acertar a bola por uma ruela estreita.
Talvez, se tivesse visto a partir do alto não faria. Mas está feito. O feito.
Os populares o alcançaram. Saltaram sobre seu corpo magro. Ajudaram o homem a erguer-se, mantendo-o em pé. Outros homens gritavam ordens, procurando serenar os ânimos. Por fim, lá conseguiram fazer recuar a multidão.
Há muito não tem o hábito com o mundo lá fora. Há semanas que nem rádio escuta. Mal consegue saber o que se passa.
Já era alta noite quando Flora acordou com tiros. Através da mesma janela da sala, viu o homem magérrimo a correr. Escutou gritos vindo do apartamento ao lado. Homens discutindo e se embebedando.
Depois, silêncio. Não conseguia dormir. Às quatro da manhã subiu ao terraço. A noite, como um poço, engolia estrelas.
Então viu passar uma carrinha de caixa aberta trazendo cadáveres que foram alcançados.
***
Na parede da sala de visitas estava pendurada uma aquarela representando toda a equipe encarnada. Flora conhecia o artista, um tipo brincalhão, divertido, velho amigo do marido. Ao princípio odiou o quadro, via nele o resumo de tudo que a horrorizava. Os jogadores perfilados em campo, os semblantes alheios à condição social. Depois, pouco a pouco, ao longo dos compridos meses de solidão e silêncio, começou a ganhar afeto por aquelas figuras impávidas, em redor de uma bola, como se a vida merecesse tanta seriedade.
Queimou as mobílias, milhares de livros, queimou toda forma de memória e constatação. Foi só quando se viu desesperada que retirou a moldura da parede. Ia para arrancar o prego, por questão estética, porque lhe parecia mal o prego ali, sem serventia, quando lhe ocorreu que talvez aquilo, aquele pedaço de metal, segurasse a parede. Talvez sustentasse todo o edifício. Quem sabe, arrancando o prego da parede, ruísse a cidade inteira.
Não o fez.
***
Escreve tateando letras, são suas últimas palavras. Experiência curiosa, pois não pode ler o que escreve.
Não escreve para si.
Os dias deslizam como se fossem líquidos. Escreve para quem já foi. Talvez, num desvão de tempo, seja possível ler as linhas que vão se traçando. Cega, enxerga melhor que antes, que todos. Chora pela infinita estupidez dos homens. Teria sido tão fácil abrires a porta, tão fácil saíres para a rua e abraçares a vida, os seus. Espreita a multidão pela janela, como uma criança que se debruça sobre a cama na expectativa de sonhos.
Sonhos. As pessoas nas ruas. A multidão em festa. A sua gente.
Pensa em Eusébio. Odeia a ideia a princípio, depois começa a apreciar. Lamenta tanto o tanto que ele perdeu.
Mas não é idêntica a infeliz condição da humanidade?
***
E nos sonhos tudo começa.
Eusébio era ainda um menino. Estava sentado numa praia de água branca. Éder, estendido de costas, com a cabeça pousada em seu regaço, olhava o mar. Falavam de passado e futuro. Confundiam recordações.
Riam da estranha condição que os unia, como haviam se conhecido. O riso dos dois sacudia o ar, como um fulgor de aves na manhã dormente. Então, Eusébio ergueu-se:
Nasceu o dia, Éder. Vamos.
E avançaram ambos em direção à luz, rindo e batendo bola, como quem entra num terreno baldio.