Por Victor Faria
Ele se encontrava sobre a estreita linha lateral. Tinha sido chamado ali a fim de cobrir algumas lacunas deixadas pelos avanços dos laterais e suprir algumas deficiências táticas do meio-campo. Ele era apenas um jogador recém-chegado ao clube. O fato de haver se posicionado à beira do campo, com as pernas trêmulas balançando no espaço, se devera simplesmente a uma série de baixas decorridas de lesões e suspensões de diversos companheiros de time. Era sua primeira oportunidade como profissional. Ele não queria dispersar este prazer misturando-o com o trabalho.
Quando viu o ajuntamento de pessoas nas arquibancadas, apontando mais ou menos em sua direção, não lhe passou pela cabeça que pudesse ser ele o centro das atenções. Não estava habituado a ser este centro e olhou para baixo e para cima e para trás, a torcida rival às suas costas. Talvez pudesse haver algum tipo de confusão ou algum torcedor em perigo ou alguém prestes a pular o alambrado.
Não havia nada identificável à vista e ele, através de operações bastante lógicas, chegou à conclusão de que o único indivíduo em destaque e potencial era ele próprio. Não que já houvesse cristalizado em sua mente, algum dia, tal desejo, embora como todo mundo, de vez em quando… E digamos que a pouca importância que dava a si próprio não permitia que aflorasse seriamente em seu campo de decisões a possibilidade de um lance grandiloquente. E que o instinto cego de adaptação e sobrevivência levava uma vantagem de uns quarenta por cento sobre seu natural talento, tanto é que ele viera levando a vida até aquele preciso momento sob as mais diversas improvisações.
Assim que fora relacionado para o jogo, ontem, no treino da manhã, que se estendera até o começo da noite, ele começou a meditar sobre as condições físicas de seus companheiros de clube, olhando para o campo e concluindo que o time continuaria firme, o que significaria que ele poderia passar a partida no banco de reservas ou aquecendo ao fundo do gramado próximo às placas de publicidade.
Costumava causar-lhe tédio, quando aquecia no campo, exercícios sem destino até o apito final. Procurava se distrair olhando os gandulas na linha oposta, o trabalho dos bandeirinhas nas pontas do gramado. Mas este não seria um problema para amanhã, nem depois de amanhã, ainda mais porque no terceiro dia cairia enfim seu pagamento. Ele era um homem que vivia nas imediações do presente, pois o passado não lhe trazia nenhuma recordação agradável, em especial, e o futuro era melhor não prevê-lo, de tão previsível. A data de pagamento, porém, era um marco cronológico ao qual se apegava.
O sujeito que o recrutara por um salário mínimo lhe dissera que ele ainda tinha sorte. Era um sujeito que gostava de usar verbos só encontrados no dicionário, que lhe pareciam conceder dignidade e pompa às suas palavras, embora ele não chegasse a materializar em sua mente tais substantivos abstratos. Autoridade e importância, sim, eram prerrogativas das quais ele se revestia em seu cargo, ele ali sentado com a gravata e a palavra, enquanto que os homens que desfilavam à sua frente permaneciam de pé e mudos, a não ser por certas respostas como “sim senhor”, ou “não senhor”.
Mas a perspectiva de passar o jogo num desses dois últimos locais trazia a vantagem de que, não indo para o campo, ele não presenciaria o que lá estivesse passando; erros de passe, apatia e deficiências técnicas. Não que ele estivesse pensando nisso em seu trajeto rumo ao campo, muito pelo contrário; ele costumava desligar-se dos problemas citados tão logo punha os pés no gramado. Sabia que uma jogada seria capaz de provocar verdadeiros milagres, um lance desmedido de improviso a inflamar a torcida, mas se um marcador se encontrasse por perto e roubasse a bola, todas as queixas recairiam sobre ele. Pelo menos era o que ele pensava, quando estava pensando nisso.
Tais aflições existiam, porém, apenas como uma espécie de latência dentro dele – uma ausência boa – ali na linha lateral, e não teriam aflorado juntamente com o próprio meio de livrar-se delas, caso ele não identificasse os gritos em coro dos torcedores como pedidos para que ele entrasse. Não que ele se dispusesse a ceder àqueles apelos, bem entendido; apenas descobria, um tanto fascinado e perplexo, que esta era uma alternativa viável para um jogador como ele, em dificuldades, mas dono de todos os seus movimentos. E isso lhe concedia uma liberdade insuspeita e uma leveza, uma vez que um fio tênue podia separá-lo da meta comum à espécie, que é não sofrer.
Pode-se indagar a respeito do medo. Se ele não tinha medo de estar ali em campo? Mas é preciso não esquecer que ele estava habituado a ocupar posições delicadas no campo. Outro, em seu lugar, talvez se magoasse com o pouco caso que o clube dava à sua vida. Mas, como já vimos, ele também se dava pouca importância, como um coadjuvante muito secundário, quase imperceptível, de um espetáculo esportivo.
Ele era um homem respeitador das regras e dos poderes e em nome de tal respeito, receio até, deixou de disputar uma bola ainda na intermediária para recuar imediatamente à defesa, quando um silêncio de expectativa neutralizado por um clamor de incentivo veio das arquibancadas, para logo depois se transformar numa vaia, quando perceberam que ele era apenas um homem trabalhando, ainda que em condições que sugeriam risco, ação, emoção, coragem.
E esta vaia, sim, foi recebida por ele com mágoa, porque os gritos anteriores tinham sido algo assim como o entusiasmo da arquibancada diante de um craque e, de repente, era como se ele houvesse executado a jogada errada. Ao fim do lance, virou-se novamente para a plateia e deu um passo miúdo adiante, para ouvir distintamente os gritos de “burro”, “burro”.
O fato é que ele jamais estivera num palco assim, sob os holofotes, e isso afetara sua modéstia. Sabia ser parte de um espetáculo que ia além da vaidade, passível de fracasso e determinada culpa por conjunto de sons da torcida. E haveria sempre alguém que pudesse narrar isso por ele, até que as condições socioeconômico-culturais da classe desprivilegiada se transformassem no país e ela pudesse falar com a própria voz.
Não era bem o caso dele, mas ele também estava provando certo poder sobre a massa, como alguns daqueles homens ilustres. E isso ampliava, de repente, de maneira literalmente vertiginosa, a sua consciência social. Aquele pessoal não era imbuído de elevados propósitos, pelo contrário, era preciso aplacá-los com sangue e circo. Então ele chegou a refletir sobre métodos de transformação da sociedade.
E havia o fato principal e que ele tinha só um momento pra viver, apesar de, paradoxalmente, andar ventilando, nesses últimos momentos, como um exercício, a hipótese de livrar-se dela. Diante disso, a sociedade como um todo era uma abstração. Ele estava se tornando agora, sempre vertiginosamente, um individualista.
Em compensação isso ampliava sua consciência poética, talvez dando razão àqueles que veem no futebol uma redenção do sofrimento. Aproximavam-se os minutos de acréscimo, uma hora bonita, ele também achava. Para realçar tal beleza na melancolia, havia a possibilidade desta tornar-se também o momento do seu acréscimo, que ele podia fazer belo e significativo. Se fizesse a jogada do gol, transformar-se-ia numa personagem de jornal, um mártir da crise, merecendo mais do que um simples registro, porque teria conseguido transformar a avenida da cidade num pandemônio, com o soar das sirenes e um carro do corpo de bombeiros que ocupara um bom trecho do asfalto.
Havia também qualquer coisa de existencialista nele, com esse negócio de viver intensamente um momento limite e dar-lhe um sentido, além de ter sido acometido, há pouco, de uma boa dose de náusea existencial em relação a si próprio e à massa humana. Por outro lado, mesmo em condições mais favoráveis, haveria o absurdo da existência. Ele era um absurdo.
Tanto é que se comentassem com ele que o Brasil, em toda sua história esportiva, jamais tivera em sua seleções um só ponta-esquerda que fosse o astro do time, ele captaria numa fração de segundo a origem e o espírito da coisa, remetendo-a a seu próprio caso e isso, sem dúvida, seria plenamente um insight, que o faria rir de nervoso, talvez o convencendo a aceitar melhor seus próprios limites, pois ele nem mesmo era canhoto e tornava-se extremamente difícil cruzar a bola com o pé trocado. E ainda lhe restaria torcer e identificar-se com um time que lhe devolvesse, de vez em quando, a sua dedicação com um campeonato; afinal nem todos podem pisar nesse palco.
E o que ele fez foi abrir espaços no meio-campo numa arrancada desenfreada, movido um pouco por uma súplica vaga, porque ele não sabia como sair honrosamente daquela armadilha adversária, e um pouco por exibicionismo ou espírito de imitação, quando um ser humano percebe que, se não podem certas realidades ser transformadas, pode-se simplesmente mudar a si mesmo, trocando-se um papel modesto por outro melhor. Utilizou de artimanhas de heróis de outras copas ao tentar ludibriar a todos com um ligeiro toque de mão. Deixou para trás toda a marcação e avançada e não teve dificuldades para alcançar a meta adversária.
Artimanha que, naquele caso específico, fez sucesso, pois a massa inteira vibrou, talvez pela popularidade da jogada, talvez por acreditar que a personagem que o encarnava finalmente iria destoar. Inevitavelmente correu às grades do alambrado para comemorar com a torcida.
Foi neste momento que se fez ouvir a voz. A voz trovejou não das alturas, mas de dentro das quatro linhas.
– O senhor desça já daí porque o gol foi irregular – disse o juiz, empunhando seu apito e um cartão amarelo. Logo percebeu que incorrera numa impropriedade sujeita que podia trazer graves consequências.
Pela primeira vez este outro homem era tratado de senhor; tratamento, porém, que adivinhava seria imediatamente abandonado uma vez nos braços truculentos da Lei. Então recuou até um limite tão preciso e precário que, fatalmente, o colocava sob a jurisdição da comissão de arbitragem.
O representante mais categorizado desta corporação, que ali estava, fora submetido a um treinamento durante o qual se levara em conta, entre outras disciplinas, as humanidades. Fez um sinal para que o outro membro da corporação se recolhesse a um canto discreto e assumiu o comando da situação com um discurso para o qual se preparava desde o dia em que descobrira sua verdadeira vocação. Um discurso onde o formalismo era substituído pelo tratamento cordial do “você”.
– Rapaz – ele disse. – Pra tudo na vida há remédio e você ainda vai rir das ocorrências que te levaram até aí em cima. Por que não chega mais perto pra gente conversar? Nós estamos aqui para ajudar.
Apesar das misturas de concordância e de uma certa armação na fala, sua voz alcançara justamente aquele tom de cumplicidade afetiva, amorosa mesmo, precioso para se estabelecer uma relação. E é preciso não esquecer que o homem não se instalara ali com a intenção de desobedecer; apenas fora tentado, inadvertidamente, pela vertigem e o poder das alturas. Virou-se então para o juiz, sob aplausos do público volúvel, e sorriu encabuladamente, como que pedindo desculpas.
Poderia ter explicado, simplesmente, que tudo não passava de um mal-entendido, era só ver o lance. Mas a verdade é que haviam ocorrido em sua mente alguns fenômenos bastante complexos, que modificaram sua visão de mundo e que ele gostaria de expor, inclusive a si mesmo, mas para os quais não encontrava palavras.
– É como se fosse um outro, compreende? – ele disse ao juiz. – Alguém possível dentro de mim, que estivesse soprando pensamentos na minha cabeça.
Neste momento, ele deu um largo sorriso, porque essas eram justamente as tais palavras. Porém o treinamento do árbitro não chegara a considerar certos aspectos mais recônditos, sutis e contraditórios da mente e, como um profissional objetivo, não teve dúvida em seu veredicto.
– É louco! Está expulso! – e avisou lá pra dentro, ao mesmo tempo que indicara ao homem a direção do vestiário.
Ele fora traído, mas, por outro lado, o seu salvador – se podia chama-lo assim – aplicara-lhe um rótulo novo que lhe oferecia também uma nova identidade, que explicasse suas novas sensações, que agora ele preferia guardar para si mesmo.
Ele estava enganado, mas não muito longe da verdade, embora o estivesse da originalidade: ele não era um sonho, mas uma alegoria social. Social, política, psicológica e o que mais se quiser.
Mas nesse ínterim chegava suado, gordo e ofegante ao recinto uma personagem bastante próxima da realidade: o gerente de futebol da equipe. Vinha imbuído de formalismo, dignidade e prerrogativas do seu cargo, além do medo de perdê-lo, diante de uma publicidade que não eram bem o que o departamento de Relações Públicas do clube tinha em mente.
– Você desonrou o uniforme. Pode trocar de roupa e me entregá-lo imediatamente. O ato que acaba de cometer é falta grave, passível de justa causa. E portanto está demitido.
E o gerente não apareceu bem na história, onde, ao contrário do que pensava, também não era sujeito, mas uma reles peça, primeiro passo numa derrocada que se iniciara com a sua demissão e terminaria com a queda do time para outra divisão, quando, por um sentimento inato de justiça, viesse a aplicar sobre o time o mesmo código severo que costumava destinar aos subordinados.
Nesta noite, apenas alguns jogadores ficaram impressionados. Embora também não encontrassem as palavras justas para dizê-lo, viram ali uma manifestação do poder atemporal e também daquele outro, maior, que fora ofendido numa de suas principais emoções. E, como punição exemplar aos desesperados, mais desespero.
Já o árbitro, nem tanto: implicou com o gandula que tripudiava sobre os despojos de sua ação, que nem mesmo chegava a ser exemplar. Suas palavras também foram registradas nos autos e, mais uma vez, a corporação apareceu bem diante da opinião pública, como um lampejo de esperança de que nem tudo estaria perdido.
Quanto à personagem principal da história, o homem da linha lateral, ao saber de seu destino, em outras circunstâncias talvez se sentisse ferido em seu ponto mais vulnerável. Não por causa da perda do salário, mas porque perceberia com clareza, que o clube havia sido para ele não apenas um emprego, uma firma na qual trabalhava, mas um invólucro, materializado pelo uniforme, dentro do qual se enfiava e que, se não lhe fornecia uma identidade marcante, o tornava parte de uma equipe.
Na verdade, ele já se encontra sob outra perspectiva. A condição sob a qual ele se encontrava era a do “outro”, aquele alguém possível que soprara pensamentos em sua cabeça, sobre a linha que divide o gramado. E ele previa, intuitivamente, que em algum lugar deveria haver um campo onde, jogando à vontade debaixo das árvores ou sentado num banco observando, ele teria todo o tempo do mundo para encontrar e conhecer o tal “outro”, até que os dois se tornassem a mesma pessoa e chutassem com o mesmo pé.