Por Bruno Fares
Domingo de manhã em San Telmo, centro de Buenos Aires. Acordar, tomar café no albergue, ir a pé andar pela calle Florida, entrar em diversas lojas de materiais esportivos, fazer o câmbio de reais por pesos, e depois transitar pelas cercanias da Casa Rosada. E acabou por aí, duas horas depois, o dia típico de um turista brasileiro em Buenos Aires.
E acabara por opção própria, pois os planos para minhas últimas horas no país vizinho era uma jornada estranha inclusive para os moradores da Capital Federal. Um metrô – ou subte – até a estação Plaza Contituicón – uma espécie de Terminal Barra Funda ou Central do Brasil – que me dava acesso aos trens com destino ao sul da Província de Buenos Aires. Apesar da maioria dos trens serem novos, o que faria o meu transporte era um modelo antigo, daqueles em condições duvidosas de uso, para me levar até a cidade de Lomas de Zamora, onde seria disputado o Clásico del Sur.
No trem pouca gente, todos sentados, fazendo o trajeto centro-periferia, tão comum nos grandes centros urbanos. De jeans, tênis adidas branco de listras verdes, e camisa da mesma cor de uma equipe da capital paulista, por baixo de um moletom surrado cinza, eu parecia mais um naquele meio. Seis estações e trinta minutos depois, o destino.
Logo ao sair da Estação Banfield já me deparo com os primeiros hinchas dispersos pelas ruas. A caminhada de cerca de dez quadras é pelo meio de um bairro residencial de classe média, com casas térreas e ruas arborizadas, lembrando o entorno do Estádio Couto Pereira, em Curitiba. E muitos muros das casas já mostravam para quem passasse por ali, quem era o orgulho e ao mesmo tempo amigo dos que lá habitavam.
O Estadio Florencio Sola encanta logo ao primeiro contato. Batizado em homenagem ao ex-presidente que levou o Taladro à liderança no campeonato de 1951, terminando empatado com o Racing que sagrou-se campeão no desempate. A cancha para quase 35 mil pessoas é imponente no meio das casas térreas. Nas bilheterias nenhuma fila, pouca chuva e um preço não muito doce de 250 pesos (cerca de 70 reais) para as populares. Destaque para o preço para menores: 48 pesos (cerca de 15 reais). Quando fui entrar reparei que era um dos únicos que estava com o ingresso em si na mão (um papel que era rasgado pela metade e nem tinha os dados da partida); a maioria entregava um papel para os fiscais da entrada, provavelmente de sócios.
Na arquibancada local, me posicionei ao lado de La Banda del Sur, principal barra brava do Verde, quando faltava mais de uma hora para o apito inicial. Primeiro sentado e depois de pé vi os demais setores enchendo pouco a pouco. Entre os melhores momentos, um garoto sendo levantado para prender sua faixa no alto do alambrado, um torcedor com um pinguim escrito C em grená e as faixas anunciando a amizade com o Nacional de Medellin.
Reparei também que o lugar que eu estava não era o melhor, pois era perto da entrada e longe da banda. Decidi trocar de lado, ficando agora à direita da barra, que ocupava todo centro da tribuna inferior. Tudo lotado também, a concentração de pessoas por degrau era formidável. Mais cenas de destaque: uma garotinha de uns seis anos de idade pendurada a mais de dois metros do chão no alambrado, com sua bandeira da Argentina – tão comum entre os torcedores hermanos – e outro hincha relembrando a passagem do rival Lanús pela Primera C, em 1981, exibindo um pedaço de cartolina laranja recortado na forma da terceira letra do alfabeto.
O Granate sobe ao gramado e a panela de pressão começa a apitar. Estádio lotado, plateas laterais com bexigas verde e brancas, nas populares a primeira linha da barra sobe nas paravalanchas com suas bandeiras, guarda-chuvas e fumaças e ao som de Banfield, mi buen amigo e muito papel picado no ar, quando o Taladro entra em campo. De onde estou mal dá pra ver a movimentação dos jogadores, com a visão parcialmente obstruída. Eu não me importo e aparentemente nem aqueles que estavam ao meu lado. Começa o jogo e o que importa é torcer. Uma questão curiosa é que o “povão” – como costuma-se chamar aqueles que não fazem parte da barra ou T.O. – não ficavam esperando a banda iniciar um tema para acompanhar o canto, muitas vezes iniciando as músicas por si só e “atravessando” o canto de La Banda Del Sur, fato inimaginável no Brasil.
Enquanto os visitantes eram os líderes da Zona 2, o time da casa ocupava apenas a 12º colocação da Zona 1; mas nos clássicos estas disparidades costumam não importar. Faltou alguém contar isso para um velho conhecido de outra torcida alviverde: Pablo Mouche. O camisa 11 dos granates fez linda jogada pela direita, cortou o zagueiro e colocou, da entrada da área, no canto direito do goleiro para fazer 1 a 0. O 1º Tempo não teve muito mais que isso. Aproveitei o intervalo para comer algo, no caso um hambúrguer seco no pão e um copo de refrigerante por salgados 90 pesos (25 reais). Na volta à bancada, decidi mudar novamente o campo de visão, ficando nas laterais das populares, com uma visão boa para a banda e o campo.
Ainda no intervalo, membros da barra distribuiram máscaras verdes do Darth Vader para todos nas populares. Não entendeu? Aos sons de son hijos nuestros, praticamente todos presentes levantaram o adereço quando o Lanús voltou ao gramado – lembrando que o termo hijo é o termo usado para chamar o adversário de “freguês”. E aí que entra o vilão de Star Wars e sua célebre frase: “I’m your father”. Detalhe para o anuncio de dias antes, que chamavam os torcedores para comparecer ao estádio e organizar a festa.
O Banfield é empurrado por gritos de hoy no podemos perder na etapa complementar, se lançando para o ataque. Mesmo sem a técnica e organização do rival, na base da força de vontade o Taladro quase chegou ao empate por três vezes, duas delas com Santiago Silva – um dos campeões pelo clube no Apertura 2009, mas que atuou no rival em temporadas mais recentes – tão claras que a própria torcida gritou gol antes da bola entrar, em atitude reprovável, razão que faria qualquer torcedor supersticioso do mundo dizer que fez com que a bola não entrasse. E não demorou muito para os locais ficarem nervosos e abrirem a caixa de ferramentas com carrinhos laterais, desarmes agressivos e empurra-empurra. Numa dessas El Tanque foi para o vestiário mais cedo, ao ser expulso, levando consigo qualquer chance de empate. Acompanhei os últimos quinze minutos grudado no alambrado, onde crianças de colo e senhores se espremiam para ver a partida entre as faixas. E foi desta posição que testemunhei a pá de cal do Granate fazendo 2 a 0, aos 43 minutos do tempo regulamentar, com Pepe Sand.
Derrota no clássico garantida, torcida local indo embora antes dos poucos minutos restantes em silêncio ou xingando, certo? Nada disso. Como nosso vizinhos costumam demonstrar é en las malas que a torcida se agiganta. Depois do segundo gol do rival, que sacramentou o revés, a hinchada do Banfield explodiu em gritos de amor a equipe, alguns começaram a escalar os alambrados, soltar fumaças, tremular bandeiras e cantar em alto em bom som eles estariam ali e não abandonariam o time dizendo en las buenas y en las malas mucho más. Impossível não emocionar qualquer apaixonado por futebol.
Repeti o mesmo trajeto para me levar de volta ao trem e à capital, andando pelas casas de Banfield, que faziam um bom resumo em seus muros do que se passara naquela tarde. Ganhando ou perdendo como naquela tarde, o verde e branco era mais que apenas futebol, es la pasion que vive en el Sur.