Por Victor Faria
Eurico sai apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que deixa o estádio, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida pela chuva. Descansa na pedra o charuto.
Dois ou três membros do clube à sua volta indagam se não está bem. Eurico abre a boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.
Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o charuto apagou. O rapaz de bigode pede aos outros que se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a grava e o cinto. Quando lhe tiram os sapatos, Eurico rouqueja feio, agita-se, bolhas de espuma surgem no canto da boca.
Cada pessoa que se aproxima ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os ambulantes conversam de uma barraca à outra. Os moradores acodem à janela. O senhor gordo repete que Eurico sentou-se na calçada, soprando a fumaça do charuto, encostava o guarda-chuva na parede. Mas não se vê guarda-chuva ou charuto ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está partindo. Um grupo o arrasta em direção ao ônibus do clube. Já na porta do veículo, alguém protesta: quem poderá salvá-lo? Acham melhor chamar socorro. Eurico conduzido de volta e recostado à parede – não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Ocupado o bar mais próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e a permanência. Agora, comendo e bebendo, gozam as delícias do alívio. Cai a noite. Eurico em sossego e torto nos portões do estádio, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugere que examinem os papéis, retirados – com vários objetos – de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Todos sabem seu nome, idade, um sinal da cruz de nascença. O endereço na carteira é de São Januário.
Registra-se correria de umas centenas de curiosos que, a essa hora, ocupam a rua e as calçadas: é o fim. O carro negro investe a multidão. Vários tropeçam no corpo de Eurico, pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproxima-se do corpo, já não pode identifica-lo – os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a aliança de ouro, que ele próprio – quando disposto – só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.
A última boca repete: “Ele caiu, ele caiu!“ E a gente começava a se dispersar. Eurico levou duas horas para definitivamente cair, não podia acreditar que esse seria seu fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um náufrago.
Um senhor piedoso sobra o paletó de Eurico para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não consegue fechar a boca, onde a espuma sumiu. Apenas mais uma queda e a multidão se espalha, as mesas do bar vazias. Do alto das janelas, moradores com almofadas para descansar os cotovelos aguardam o desfecho.
Um menino descalço vem com uma vela, que acende ao lado do corpo. Parece fraco há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecham-se uma a uma as saídas. Três horas depois, lá está Eurico à espera de seu destino. A cabeça encostada na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se à primeiras gotas de chuva, que torna a cair.