A dupla Richard Giulianotti e Roland Robertson, entre outros textos, ensaios e pensatas, lançou em 2009 o livro Globalization and Football, cujo título autoexplicativo revela uma reflexão sobre como o jogo possibilita pensar a relação entre toda a influência de uma estética política e economicamente dominante – no caso do futebol, a Champions League e o padrão Fifa, por exemplo – e as particularidades de cada realidade. A coisa da dualidade entre global e local, universal e particular.
O texto faz pensar que, ainda que exista uma comunidade internacional do futebol impondo padrões como o conceito de fair play, as reações são diferentes em cada cultura, cada rotina: a arbitragem é diferente na Inglaterra (mais contato) e no Brasil (menos tolerância em entradas consideradas leves na Europa); ingleses são intolerantes com atletas que simulam faltas, por exemplo; ou mesmo a religiosidade, no Brasil marcada pelos Atletas de Cristo que se articulam nas concentrações e comemoram os gols apontando ao céu, varia e interfere na relação dos jogadores com o jogo.
Ou seja, resumo da história na visão dos autores: ainda que o futebol, como elemento popular na era da globalização e difundido em todo o planeta, seja também um bom exemplo de objeto de pasteurização, as reações e formas com que o esporte é jogado em cada lugar garante a heterogeneidade da prática. Aqui e aqui dá para ler mais sobre.
Muito dessas realidades locais, acredito, se dá pela atmosfera das partidas. Que todos os chutadores de bola desse país piram no Messi, no Cristiano Ronaldo e no Neymar já é fato; que todos os técnicos brasileiros enchem a boca para falar do Guardiola, ponto dado (e vá se atrever a dizer que não gosta do estilo de jogo do espanhol); e que todos meninos de cada rincão de Brasil querem jogar no Barcelona ou Real Madrid, sabemos há tempos. Agora, ainda que o Campeonato Brasileiro já esteja bastante infectado pelas arenas assépticas, ainda há Brasis a serem notados aqui e ali. Cada vez mais raros, mais controlados, menos livres, menos populares. Como no gol de Wendell Lira, que rodou o mundo, brasileiríssimo: abandonado, solto, criativo, desempregado, feliz, num estádio vazio e antigo.
Ali, as perspectivas, sonhos e referências podem estar no Camp Nou, no Santiago Bernabéu. Mas ali é o Serra Dourada, registrado e cravado na pedra da história.
O Serra Dourada era quem melhor passava a impressão desse país gigantesco, cheio de suas caras regionais e particularidades. Era. Ao menos em uma de suas marcas, as dimensões do campo de jogo, no que sempre se notabilizou por ser das maiores do país, terá agora de se adaptar, para a temporada 2016, à padronização da CBF de acordo com a medida usada em Copas do Mundo.
Vale lembrar que a regra do futebol permite gramados em medidas que variam de um mínimo, 90m por 45m, a um máximo, 120m por 90m. Em jogos internacionais, o corte é menor, de 100m por 64m até 110m por 75m. Para Copas do Mundo, e por consequência em todos os novos estádios dos grandes times do planeta, estipulou-se o meio-termo: 105m por 68m.
Até o Brasileiro de 2014, Ilha do Retiro, São Januário e Serra Dourada eram os três maiores gramados do país, com 110m por 75m. O campo do Sport já passou pela adaptação neste começo de ano; o do Vasco, que chegou a diminuir por ser sede oficial de treinamento da Copa, cresceu por determinação de Eurico Miranda (que achava que o campo pequeno prejudicou o time na Série B contra equipes retrancadas), mas já voltou ao tamanho Fifa; o estádio público de Goiânia deve passar pelo mesmo em breve.
O Serra Dourada completou 40 anos em março de 2015. Projeto do premiado arquiteto Paulo Mendes da Rocha, chegou a ter dimensões ainda maiores, de 118m por 80m. Provavelmente com esse tamanho recebeu a polêmica atuação de José Roberto Wright na classificação do Flamengo sobre o Atlético-MG, em jornada que o time de Belo Horizonte teve cinco jogadores expulsos e viu a partida terminar, por essa razão, com apenas 35 minutos de bola rolando. Foi também o gramado em que Maradona arrancou em quatro jogos da Copa América. E tantos outros duelos históricos, na memória do fã de futebol local.
Padronizar o tamanho do gramado para um Campeonato Brasileiro é uma afronta a um esporte que sempre se notabilizou por ser democrático e por permitir exatamente essa troca de impressões e percepções regionais. E não nos deixemos cair na armadilha de comparar essa determinação, autoritária e submissa a esse padrão da estética europeia, com a altura da rede do vôlei ou a distância da cesta de três pontos no basquete. O tamanho do campo – repito, o tamanho do campo, não o tamanho do gol ou o recuo da marca do pênalti – sempre variou. Com Friedenreich, Pelé ou Wendell Lira. Agora não mais. Mais um ponto para os idiotas da objetividade, Nelson.
Como já não tenho nenhuma expectativa sobre qualquer resistência de identidade ou afetividade em relação ao futebol – depois que uma canetada derrubou o Maracanã na calada da noite, alguém se importa com quem curtia o tamanho do gramado de um estádio em Goiás? -, já me surpreende que o próximo campeonato ainda permita estádios que não são arenas. Mas eles vão conseguindo. Reformar e construir estádios dá dinheiro. E não haveria organização tamanha para lançar algo como fez a Premier League 20 e poucos anos atrás. Mas eles vão conseguindo, aos poucos, deixar tudo perfeitamente reto, simétrico, em justa imagem e semelhança do que assistem na TV. E, pelo jeito, vão chegar lá.
O global nos engole. Padrão, padrão, padrão. E o próximo voleio do Wendell Lira, seja em Goiânia ou Tóquio, será num 105m por 68m, para ser nas mesmas condições do voleio do atacante do Sevilla em Barcelona ou do Olaria no Maracanã. Aliás, como a Fifa ainda não determinou isso: o prêmio de gol mais bonito só vale para estádios 105m por 68m. Bingo!
E pensar que o Zé Sérgio correria, feliz da vida, por uns trocentos quilômetros antes de rolar a bola para o Zico na histórica jogada no bom e velho Serra Dourada. Zico, Sócrates, Cerezo, Zé Sérgio, Zico (a partir de 1:09:50):
https://www.youtube.com/watch?v=Ocy5SzDabbY